sábado, 27 de setembro de 2008

Já não se escrevem cartas de amor, Mário Zambujal


Neste livro que se lê com uma facilidade extraordinária, Mário Zambujal segue os passos de Duarte, um jovem bon vivant, que, entre as noites glamorosas passadas no Grande Casino Internacional do Estoril, as tardes de café no Chave D’Ouro, no Palladium ou no Martinho do Rossio e a vida boémia nas boîtes da capital vai contando amizades, amores e desamores ao mesmo tempo que vai retratando a vida em Lisboa (mas não só) na década de 50.

A narrativa decorre num espaço temporal de aproximadamente 5 horas, durante as quais Duarte, já com 70 anos, enquanto espera que a mulher regresse a casa, vai recordando episódios da sua juventude.

A certa altura, decidi que não poderia passar a noite parado como um legume, apelei à poca coragem e disse para mim próprio: "Seja o que Deus e Erika quiserem".

Apaixonado perdidamente por Erika, uma jovem austríaca, Duarte cedo de apercebe de que a vida nem sempre nos dá o que queremos e enquanto persegue a sua felicidade vai presenteando o leitor com episódios característicos da juventude.

Excepto alguns apetites por teatros e cinemas, as noites de Lisboa já não são minhas, repelem-me como como a um corpo estranho. Desapareceram quase todas as boîtes, os grandes cafés, que não se mascaravam de restaurantes, nas horas da refeições, os próprios cinemas da minha intimidade.
Pior que os lugares, foram-se esfumando os conhecimentos. De longe em longe encontro algum velho empregado de mesa que faz uma festa e pergunta por gente que não se onde pára.

Vivia-se então uma época de apetites e excessos. De paixões e desventuras. Era um tempo em que havia tempo. Até se escreviam cartas de amor.

sábado, 20 de setembro de 2008

"Império à Deriva", Patrick Wilken

Apesar de não ser um romance este livro de Patrick Wilcken consegue seduzir o leitor, prendendo-o até ao fim, altura do desfecho da estória e da História.

Abarcando o período conturbado entre 1808 e 1821, altura da ida da corte portuguesa para o Brasil o autor faz um apanhado dos principais acontecimentos dando a conhecer alguns pormenores que foram ficando esquecidos e que nunca chegaram a constar dos manuais de História. Alguns episódios são são verdadeiramente caricatos apesar de reais.

O personagem central não poderia deixar de ser o rei D. João VI descrito como uma personagem mais ou menos medíocre que não estava preparado para ascender ao trono e que em circunstâncias normais não o teria feito mas além do irmão mais velho ter morrido inesperadamente, a sua mãe, a rainha Maria I, perdeu o juízo (ao que parece sofria de pânicos religiosos e pensava que alem de estar condenada ao inferno o diabo a espiava diariamente...) e ele acabou por ter que assumir a regência por muitos e longos anos. Toda a história assenta na relutância da corte portuguesa em fechar os seus portos ao comercio inglês respeitando assim o decreto de Berlim de 1806 que forçava a quebra de todos os contactos com a Grã-Bretanha e as suas colónias. Os poucos portos neutros na Europa estavam presos entre a Royal Navy e os exércitos de Napoleão e com o exemplo do bombardeamento do porto de Copenhaga pelos navios Ingleses ficou claro que era necessário escolher um lado para evitar o colapso do Império marítimo português. Pressionado por Strangford o emissário inglês, acabaram por embarcar cobardemente para o Rio de Janeiro deixando o pais prestes a cair nas garras de Junot que havia atravessado a fronteira há poucos dias.

Toda a travessia é descrita com pormenor por este escritor neozelandês mas a "melhor parte" é sem dúvida a chegada ao Brasil onde os súbditos, que aguardavam figuras imponentes, vêm chegar uma comitiva surreal.


sábado, 13 de setembro de 2008

"O mistério da cripta assombrada", Eduardo Mendoza


O narrador e protagonista deste livro é um herói atípico. Na verdade, de herói tem muito pouco mas, de facto, no fim é ele que desvenda o mistério.

Eu sou louco. Ou, pelo menos, decretaram-me louco e estou internado num manicómio. Hoje recebi a visita de um velho conhecido, o comissário Flores em pessoa. Precisa de mim para um assunto delicado. Necessita de recorrer a um pobre diabo, sem qualquer importância, que possa ser eliminado sem prejudicar a sociedade, ou seja, eu. E, se eu resolver brilhantemente este enigma, serei um homem livre.

É a um manicómio, controlado pelo Dr. Sugrañes, que o Comissário Flores vai buscar um psicopata reabilitado (aparentemente, pelo menos) para desvendar um caso de uma jovem de 14 anos desaparece misteriosamente sem deixar rasto. Reaparece, 2 dias depois, sem conseguir recordar nada do que entretanto aconteceu. 6 anos depois desaparece outra rapariga, exactamente nas mesmas circunstâncias. E é assim que surge o nosso protagonista, um doente mental, internado num manicómio que é forçado pelo comissário Flores e pela Madre Superiora do colégio a investigar o caso.

Com uma escrita corrida capaz de levar o leitor a uma gargalhada este livro, à semelhança de um outro de Eduardo Mendoza A Aventura do Cabeleireiro de Senhoras utiliza o humor e a caricatura para ironizar com aspectos do quotidiano social com o qual nos deparamos diariamente.

Este é muitas vezes referido pelo autor como o livro que mais gostou de escrever. Foi o seu segundo livro e foi escrito, sem rascunho, sem investigação, numa semana de retiro no seu apartamento em NY.

Desengane-se quem acha que este género é incompatível com um grande escritor, pois Mendoza é considerado uma das vozes mais relevantes na literatura contemporânea em Espanha e marcou posição com outros títulos como A cidade dos prodígios ou Uma comédia ligeira.


sábado, 6 de setembro de 2008

"A mulher de Job", Andrée Chedid


Andrée Chedid é uma escritora incontornável quando se fala em literatura francesa contemporânea. Com uma obra muito vasta entre romances, ensaios e peças para teatro, reconta neste pequeno livro um dos textos do livro sagrado, a Bíblia.

É uma história de provação e de crença mas também uma história de amor, de acreditar. Se na bíblia a mulher de Job tem um papel quase invisível do qual se retira apenas a parte negativa pois afinal foi ela quem disse "amaldiçoa Deus e morre", neste pequeno livro temos um outro lado da história e todo um enquadramento para esta afirmação desesperada.

A mulher olha para o seu homem envelhecido. Nunca se cansa de olhar para ele, de medir aquele amor amor tenaz, aquele amor indestrutível. A mulher contempla Job tão intensamente que acaba por se reflectir nele. Não como uma réplica mas como uma imagem invertida, marcada pelos mesmos anos, desgastada pelo mesmo passar do tempo, atingida pelas mesmas desgraças...

Depois de uma vida cheia, preenchida com a crença em Deus, Job vê a sua força ser posta à prova com a provação da doença. O sofrimento porém nunca o leva a duvidar desse seu Deus.

Uma tarde, julgando-se sozinho, Job cedeu às lamentações. Um queixume sombrio, acompanhado de estertores e monossílabos elevou-se no quarto. Por detrás dele, vigilante, comovida com o choro, revoltada com esse Deus impiedoso que Job aceita, a mulher gritou com voz estridente: O quê, teimas nessa adoração, nessa integridade? Amaldiçoa Deus e morre.

Este pequeno livro tem uma escrita fácil e uma narrativa que prende o leitor da primeira à última página. Uma história de amor tão irresistível como um exército em marcha que é o que Job, numa declaração de amor, diz à sua mulher.

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